Ele sabia que os adultos não conseguiriam — e não deveriam — compreender os eventos que se desdobravam tão perto de casa. Sua família, ingenuamente envolvida e usada na batalha, estava em perigo, e somente o menino era capaz de perceber isso. A responsabilidade inescapável de defender seus entes queridos fez com que ele recorresse à única salvação possível: as três mulheres que moravam no fim do caminho. O lugar onde ele viu seu primeiro oceano.
Novo livro adulto do Neil Gaiman sendo lançado no Brasil e, bom, não me lembro de ter estado tão ansioso assim para a leitura de um livro há um bom tempo. Tudo bem, eu sempre estou ansioso para ler algum livro, mas nesse caso minha ansiedade era tamanha que sequer consegui aguentar até a chegada do exemplar que a Intrínseca me cedeu para leitura e li-o em versão digital, pelo Kobo. Li não. Devorei.
É com imensa segurança em sua própria capacidade de escrita (intrínseca em cada palavra da obra) que o Gaiman nos apresenta esse universo e suas personagens, dotadas de inúmeras características próprias e, como o próprio confessou, outras tantas tomadas emprestadas de suas próprias memórias. Este é, sem dúvidas, um livro daqueles que nos tira de nossa zona de conforto e nos desafia a encarar a vida com outra perspectiva.
Descrever a escrita do Gaiman nunca será fácil, afinal, só quem já leu algo de sua autoria entenderá — e muito provavelmente também não saberá explicar — a sensação de estar envolto em suas palavras, ou melhor, em seus mundos. Palavras e mundos que, por sinal, entram em nossas mentes, esgueiram-se pelas paredes de nossos pensamentos e gravam-se permanentemente lá, como tatuagens. O Oceano no Fim do Caminho não é diferente. Ou talvez seja. Há algo mais (não sei explicar o quê, mas há) e você só saberá realmente do que falo lendo — o que, honestamente, sugiro que você faça.
A estória que nos é contada aconteceu pouco tempo após o desastroso aniversário de sete anos da personagem principal (a quem o autor sabiamente não deu nome), na verdade, a estória começa de fato décadas depois, quando esta mesma personagem, já homem, volta ao lugar onde tudo começou, para uma cerimônia fúnebre. O fato é que em certo momento se vê dirigindo sem rumo, ou melhor, para um rumo inconsciente; passando pela casa onde viveu dos sete aos doze e seguindo a estradinha até o fim da estrada, até enxergá-la: a fazenda das Hempstock. Fora lá que conhecerá sua antiga amiga de infância, Lettie Hempstock, um pouco mais velha do que ele, que vivia na antiga fazenda com sua mãe e a avó. Na velha fazenda havia um lago, que Lettie insistia em chamar de oceano e é ali, sentado em frente a ele, que se vê assaltado por suas lembranças.
Outro ponto que acho digno de ser citado: a tradução do livro está excelente, assim como o trabalho gráfico e acabamento do mesmo. Não costumo frisar este aspecto, mas, bom, eu me sentiria um lixo se não o fizesse desta vez. E, é claro, é hora do quote:
Eu sonhava com aquela música, com as palavras estranhas na simples cantiga de roda, e em vários momentos nos sonhos entendia o que Lettie estava dizendo. Nos sonhos eu também falava aquela língua, a língua original, e tinha domínio sobre a natureza de tudo o que era real. No meu sonho, aquela era a língua do que é, e tudo o que fosse falado nela se tornava realidade, porque nada dito com ela pode ser mentira. A língua é o fundamento da construção de tudo. Nos meus sonhos, eu usei esse idioma para curar os doentes e para voar; uma vez sonhei que tinha uma pequena pousada à beira-mar, e para todo mundo que se hospedava lá eu dizia, naquela língua, “Sê inteiro”, e eles se tornavam inteiros, e não pessoas fragmentadas, não mais, porque eu havia falado na língua da criação. (pág. 56).
Uma estória sobre magia, amizade, mas principalmente sobre a importância de nossas ações nas nossas vidas (e, às vezes, de outras). Neil Gaiman está de volta; e de forma avassaladora. Se eu pudesse descrevê-lo em uma única frase, ela seria: Eu queria ter escrito isso!